A Direção Central da Polícia Judiciária em Porto Príncipe, onde mercenários americanos foram detidos no dia 17 de fevereiro.

Como ex-militares dos EUA e mercenários inexperientes acabaram presos no Haiti

Missão: transferir bolada para presidente haitiano e ganhar US$ 30 mil pelo serviço. Um negócio bom demais para os ex-militares e mercenários recusarem.

A Direção Central da Polícia Judiciária em Porto Príncipe, onde mercenários americanos foram detidos no dia 17 de fevereiro.

A maioria dos americanos chegou a Porto Príncipe vindo dos Estados Unidos em um jato particular na manhã de 16 de fevereiro. No avião charter de oito passageiros, eles carregavam um estoque de rifles semiautomáticos, revólveres, coletes Kevlar à prova de balas e facas. A maior parte deles já havia sido paga: US$ 10 mil previamente para cada um, e outros US$ 20 mil prometidos a cada homem após o término do trabalho.

Um trio de haitianos ligados à política recebeu os americanos quando seu avião pousou por volta das 5 horas da manhã. Um assessor do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, e outros dois haitianos amigos do regime, os levaram ao maior aeroporto do país, sem passar pelos agentes alfandegários e de imigração, que ainda não haviam começado a trabalhar.

A equipe americana incluía dois ex-SEALs da Marinha, outro mercenário treinado pela Blackwater, e dois sérvios que viviam nos EUA. Seu líder, um ex-piloto de 52 anos chamado Kent Kroeker, havia dito a seus homens que esta operação secreta havia sido solicitada e aprovada pelo próprio Moïse. Os emissários do presidente haitiano disseram a Kroeker que a missão envolveria escoltar o assessor presidencial Fritz Jean-Louis ao banco central do Haiti, onde ele transferiu eletronicamente US$ 80 milhões de um fundo de petróleo do governo para uma segunda conta controlada exclusivamente pelo presidente. No processo, os haitianos disseram aos americanos que estariam preservando a democracia no Haiti.

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Era um negócio bom demais para o bando de veteranos militares semiempregados e funcionários de segurança recusarem.

Mas, um dia depois de desembarcarem no Haiti, eles se viram encarcerados e no centro de um alvoroço político, com os haitianos perguntando o que um grupo de mercenários estrangeiros estava fazendo no banco central do país e para quem trabalhavam. Em três dias, Kroeker e sua equipe seriam libertados e enviados de volta aos EUA, tendo conseguido de alguma forma escapar das acusações criminais no Haiti.

Muitos detalhes da operação permanecem obscuros. Porém, com base em entrevistas com autoridades policiais e governamentais haitianas, bem como com uma pessoa com conhecimento direto do plano, é possível ter uma ideia mais clara sobre a desajeitada tentativa. O que a princípio parecia uma conspiração cômica sobre um grupo de ex-soldados que procuravam uma missão mercenária rápida e fácil foi, na verdade, um esforço mal executado, mas sério, de Moïse para consolidar seu poder político utilizando força americana.

Nem Moïse nem a Embaixada Haitiana em Washington D.C. responderam aos pedidos de comentários.

Nenhum dos americanos falou diretamente com Moïse ou recebeu documentos oficiais do governo haitiano autorizando-os a realizar a missão, segundo a pessoa com conhecimento direto da operação. No entanto, Jean-Louis e o outro organizador do plano, Josué Leconte, um haitiano-americano do Brooklyn e amigo próximo de Moïse, não parecem ter sido completamente desonestos.

Os americanos chegaram em um momento político e econômico tumultuado em um país com uma história de inquietações. Desde julho do ano passado, quando Moïse tentou aumentar os preços dos combustíveis em até 50%, protestos intermitentes paralisaram o Haiti.

Milhares de manifestantes marcham nas ruas durante protesto para exigir a renúncia do presidente Jovenel Moïse em 7 de fevereiro.

Milhares de manifestantes marcham nas ruas durante protesto para exigir a renúncia do presidente Jovenel Moïse em 7 de fevereiro.

Imagem: Dieu Nalio Chery/AP

De 2008 a 2017, a Venezuela forneceu ao Haiti cerca de US$ 4,3 bilhões em petróleo barato sob o Acordo Petrocaribe, assinado pela Venezuela com o Haiti e outros 16 países do Caribe e da América Central. O Haiti fez um acordo particularmente favorável: 40% do dinheiro devido à Venezuela seria pago em 25 anos a uma taxa de juros anual de 1%. Além disso, o Haiti estava livre para aumentar sua receita de petróleo para o fundo Petrocaribe. O fundo deveria apoiar hospitais, clínicas, escolas, estradas e outros projetos sociais, e ajudou a apoiar o governo haitiano após o devastador terremoto de 2010 e o furacão Matthew em 2016.

Mas as sanções da administração Trump à Venezuela e a má administração financeira do governo haitiano levaram o banco central haitiano a interromper os pagamentos à Venezuela, e o acordo Petrocaribe terminou efetivamente no início de 2018. Uma investigação do Senado do Haiti constatou que os quase US$ 2 bilhões do fundo foram em grande parte desviados e roubados, principalmente sob a liderança do Presidente do Haiti, Michel Martelly, entre 2011 e 2016.

Moïse chegou ao poder em 2017, após ser acusado de lavagem de dinheiro pelo promotor-geral de Porto Príncipe, Danton Leger. As alegações de corrupção, combinadas com o fim do petróleo e do crédito barato venezuelano, criaram uma tempestade perfeita de indignação popular. Nos últimos meses, Moïse e o primeiro-ministro haitiano, Jean-Henry Céant, têm disputado o poder, e a decisão de Moïse de apoiar os esforços recentes do governo Trump para minar o presidente venezuelano Nicolás Maduro deu início a uma nova rodada de protestos populares no Haiti pedindo a renúncia de Moïse. Sob a constituição haitiana, isso tornaria Céant o líder do país.

Foi dito aos americanos que o fundo Petrocaribe é controlado por Moïse, Céant e pelo presidente do banco central, Jean Baden Dubois. Por conta da ampliação do conflito político entre o presidente e o primeiro-ministro, esse arranjo deixou US$ 80 milhões efetivamente congelados, segundo a pessoa com conhecimento direto da operação.

Leconte e Jean-Louis disseram aos americanos que, ao transferir o dinheiro para uma conta que Céant e Dubois não pudessem acessar, Moïse poderia liderar o país de forma mais efetiva – daí a promessa de que eles estariam apoiando a democracia do Haiti. O fundo era o único instrumento econômico significativo do governo, e a medida garantiria a posição de Moïse e congelaria seu primeiro-ministro. Não está claro o que Moïse pretendia fazer com o dinheiro uma vez que ganhasse o controle sobre ele.

Segundo a fonte com conhecimento direto, Leconte pagou os americanos pela operação. Leconte e seu sócio, Gesner Champagne, que também se encontrou com os americanos no aeroporto de Porto Príncipe, estavam atuando como intermediários, dando a Moïse uma negação plausível, informaram aos norte-americanos.

Em troca da ajuda, o presidente prometeu a Leconte e Champagne que daria um contrato nacional de telecomunicações para a Preble-Rish Haiti, a empresa de engenharia e construção da qual Leconte e Champagne são donos, disseram Jean-Louis e Leconte aos americanos.

O Banque de la République d'Haïti no centro de Porto Príncipe em 8 de março.

O Banque de la République d’Haïti no centro de Porto Príncipe em 8 de março.

Imagem: Kim Ives/Haïti Liberté

Jean-Louis, Kroeker e seus cinco companheiros de equipe chegaram ao Banque de la République d’Haïti, no centro de Porto Príncipe, por volta das 14h do domingo, 17 de fevereiro, cerca de 36 horas depois que os americanos desembarcaram. Além de ser um assessor presidencial, Jean-Louis foi o ex-diretor da loteria nacional, que funciona fora do banco central. Não está claro se o seu trabalho anterior foi relacionado ao fato de ele ter sido escolhido para transferir o dinheiro.

Os americanos pararam em três carros e saíram. Eles estavam fortemente armados em torno de Jean-Louis, protegendo-o. O banco foi fechado, mas de acordo com a fonte com conhecimento direto, Jean-Louis disse a um segurança na porta que eles estavam no banco a negócios. Suspeitando de sua intenção, o segurança se recusou a deixá-los entrar. Em vez disso, alguém alertou a polícia.

Um impasse de duas horas se seguiu na Rue des Miracles. Cercado pela polícia, Kroeker chamou um sétimo membro de sua equipe para ajudar a negociar sua libertação. Dustin Porte, um prestador de serviços de eletricidade e ex-membro da Guarda Nacional da Louisiana que falava francês, apareceu e falou com a polícia em nome dos membros de sua equipe. Os contratados acabaram se entregando, dizendo à polícia que tudo era um grande mal-entendido – e que eles estavam lá em uma missão do governo, conforme o Miami Herald.

A polícia perguntou aos americanos porque eles não haviam passado pelos canais oficiais, se a missão deles era legítima, disse uma importante fonte haitiana da polícia ao Intercept.

“Porque o presidente não confia em vocês”, respondeu um dos contratados, segundo o policial haitiano, que pediu para não ser identificado porque não estava autorizado a falar publicamente sobre o ocorrido.

A polícia haitiana prendeu Kroeker, o líder da equipe; os ex-SEALs da Marinha Christopher McKinley, 49 anos, e Christopher Osman, de 44; o ex-funcionário da Blackwater, Talon Burton, 51 anos; e Porte, de 43. Eles também detiveram os dois sérvios, Danilo Bajagic, de 36 anos, e Vlade Jankovic, de 40. Fotos de suas armas e equipamentos táticos, que incluíam seis fuzis semiautomáticos, seis pistolas, facas e pelo menos três telefones via satélite, logo surgiram nas redes sociais.

Fontes da polícia haitiana dizem que alguns, se não todos os mercenários, trouxeram suas armas consigo e que as marcas, modelos e números de série das armas foram entregues ao Departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos dos EUA. Até agora, as autoridades dos EUA não levaram adiante as acusações contra os mercenários por viajarem ilegalmente para fora dos Estados Unidos com suas armas, algo que requer uma licença.

Jean-Louis aparentemente conseguiu fugir durante o longo impasse. Mas, depois que os americanos foram colocados na cadeia, Michel-Ange Gédéon, diretor-geral da Polícia Nacional do Haiti, recebeu telefonemas de Jean-Louis, do auxiliar presidencial Ardouin Zéphirin e do ministro da Justiça haitiano Jean Roudy Aly, que alegou que os americanos estavam conduzindo “negócios do Estado” e fazendo “trabalho para o banco”, de acordo com uma fonte policial bem posicionada. Em cada caso, os autores das ligações afirmaram que Moïse havia autorizado os americanos e que ele deveriam ser libertados. Gédéon se recusou a fazê-lo.

Céant não respondeu aos vários pedidos de comentários sobre a questão. Pouco depois de os americanos terem sido presos, ele foi ao rádio chamar a equipe de “terroristas” e “mercenários” que tentavam obter controle sobre o banco para que pudessem assassinar ele e outros parlamentares não especificados. Mais tarde, ele voltou atrás nas declarações, dizendo que elas se tratavam de “hipóteses”.

Na segunda-feira, o parlamento do Haiti votou pela expulsão de Céant como primeiro-ministro, mas Céant permaneceu resistente. “Há parlamentares que decidiram fazer algo ilegal e inconstitucional e que contraria princípios, tradições republicanas e tradições parlamentares”, disse ao jornal Haitiano Le Nouvelliste. “Eu sigo no cargo como primeiro-ministro.”

A estratégia poderia ter sido bem-sucedida se algum dos participantes americanos tivesse experiência anterior conduzindo uma missão mercenária clandestina em um país soberano. Ao invés disso, eles eram uma mistura de veteranos militares, incluindo um ex-SEAL que havia sido recentemente acusado de agressão por um incidente em estrada no sul da Califórnia e outro que era fisiculturista com um papel secundário como cantor de música country. Havia ainda Kroeker, que entre outros empreendimentos dirigia um negócio de suspensão de caminhões; Burton, ex-policial militar do Exército e contratado de segurança do Departamento de Estado; e Porte, dono de uma pequena empresa de assistência elétrica que obteve um contrato de 16 mil dólares com o Departamento de Segurança Nacional.

Kroeker, de acordo com uma pessoa com conhecimento direto, assegurou a seus colegas que a missão seria fácil. Mas, embora os americanos estivessem bem armados, eles não dispunham da contratação de outras provisões básicas para uma operação de segurança secreta: cobertura de seguro, plano de evacuação médica, autoridade legal para trazer suas armas para o Haiti ou um plano de fuga se as coisas corressem mal.

“Eles não tinham ideia do que estavam fazendo”, disse a pessoa com conhecimento direto, que pediu anonimato para falar publicamente sobre a missão clandestina.

Uma lista, criada pela polícia haitiana e adquirida pelo Haïti Liberté, dos números de série de armas que os mercenários tinham.

Uma lista, criada pela polícia haitiana e adquirida pelo Haïti Liberté, dos números de série de armas que os mercenários tinham.

Depois que o Departamento de Estado garantiu a libertação dos americanos, todos os envolvidos na operação se dispersaram. Quando os americanos foram libertados, Jean-Louis e Leconte tinham fugido do Haiti. Leconte voltou para os EUA saindo da República Dominicana, segundo a pessoa com conhecimento da operação; um dia depois de desembarcar em Nova York, seu perfil no Facebook foi removido. Em 24 de fevereiro, Leconte fugiu de um repórter que pediu comentários do lado de fora de sua casa no Brooklyn e se escondeu em uma garagem.

Chris Osman, um dos ex-SEALs da Marinha e o único membro da equipe a discutir publicamente a operação no Haiti até agora, escreveu no Instagram que estava no Haiti fazendo trabalho de segurança para “pessoas que estão diretamente ligadas ao atual presidente”. Osman insinuou a intriga política haitiana por trás do esquema, afirmando que ele e seus colegas “estavam sendo usados como peões em uma luta pública entre [Moïse] e o atual primeiro-ministro do Haiti”. Mais tarde, Osman deletou seu post.

Leconte e Champagne discutiram um possível contrato para uma nova missão com Kroeker se a transferência de dinheiro fosse bem-sucedida, segundo a pessoa com conhecimento direto da missão. Não está claro o que essa nova missão poderia ter sido.

Tradução: Maíra Santos

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