Escrevi um quadrinho sobre racismo e Rui Barbosa e o mundo caiu na minha cabeça

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Há algumas semanas, eu escrevi o roteiro de um quadrinho desenhado pelo Estevão Ribeiro e o mundo caiu sobre minha cabeça. A personagem do Estevão, a Rê Tinta, conduziu uma conversa sobre a incineração de documentos relativos à escravidão brasileira. Sob as ordens do então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, fogueiras foram acesas pelo menos no Rio de Janeiro e na Bahia para queimar e destruir milhares de papéis sobre importação de escravos. E, com eles, nossa história.

E por que apanhamos de parte da audiência do Intercept e também das redes sociais? Porque dissemos que a queima promovida por Barbosa foi para negar a história da escravidão brasileira. A tese corrente e mais aceita pela história nacional é outra. “A explicação oficial é que Rui Barbosa teria queimado as notas fiscais de compra e venda dos escravos para que evitar que a justiça concedesse indenização aos ex-senhores de escravos”, disse o leitor Ari Silveira dos Santos Filho. “Caros, essa é uma das fake news históricas mais disseminadas e já desmentidas. Rui Barbosa era abolicionista. A versão hoje aceita pelos historiadores diz que ele queimou documentos fazendários — especificamente esses, e não todos os documentos da escravidão — para evitar que senhores escravocratas pleiteassem indenização do Estado”, reiterou o Maurício.

Não tínhamos ideia de que essa polêmica ganharia tamanha dimensão. O dano que as fogueiras causaram a pessoas como eu, que tiveram dificultada ou impossibilitada a pesquisa sobre a origem da própria família – sequer conheço meu sobrenome original –, ou pela possibilidade de eu, e não quem era dono de meus antepassados, pedir indenização ao estado é conhecido e debatido no movimento negro há muito tempo. Não é uma tese nova e muito menos descabida. Então eu decidi escrever mais profundamente sobre isso.

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Rui Barbosa é um dos nomes mais aclamados da história moderna brasileira. E não era racista. Antes disso: ele foi abolicionista, como nós dissemos em nosso quadrinho.

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Mas o que estava em discussão não era toda a história de Barbosa em relação aos negros, mas sua atitude pontual de mandar queimar os documentos. Então vamos começar pelo começo.

Não há nenhum registro histórico que prove que a motivação de Rui Barbosa para queimar os arquivos tenha sido evitar que os donos de escravos pedissem indenização. Não há uma fala, um artigo, uma entrevista de Barbosa citando esse motivo. Mas eu vou falar disso logo abaixo. Antes, quero recuperar o principal registro, o oficial, sobre a motivação da queima. Aqui está o texto, na íntegra, do decreto assinado por Rui Barbosa para incinerar os papéis.

O motivo, registrado no despacho do então ministro, está ali:

“(…) destruir esses vestígios por honra da pátria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que a abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira.”

A queima se procedeu para “honrar a pátria” e para recomeçar uma nova história em comunhão entre escravos libertos e brancos. Ou seja: vamos apagar o passado e pensar daqui para frente. Ou, como notou o jornalista Luiz Garcia no jornal O Globo em 2004, “Rui achava que a destruição dos registros salvaria a honra nacional. Em alguns anos, ninguém teria vergonha da vergonha que foi a escravidão – por ignorar que ela teria existido.” Uma legítima queima de arquivo para negar o passado. Esse é o motivo oficial e documentado.

 

Um dos textos mais famosos na internet sobre o assunto é do professor Arnaldo Godoy, que constrói sua narrativa a partir da biografia de Rui Barbosa. Segundo sua linha de raciocínio, um grupo de escravocratas teria pressionado a República para conseguir ressarcimento pelo fim de sua propriedade (os pretos), o que é verdade. Existiam, à época, fortes pressões para que o Brasil pagasse aos senhores de escravos pelas perdas financeiras da abolição. Assim, Rui Barbosa teria livrado o governo dessa pressão com o extermínio dos arquivos. Como não há provas documentais para sustentar a tese – e por isso Godoy usa corretamente a construção “teria como objetivo”, e não “teve como objetivo” – ele se apoia no trabalho extenso do autor Américo Jacobina Lacombe, o maior especialista brasileiro sobre Barbosa.

Lacombe defende a ideia baseado em um episódio acontecido dois anos depois da abolição, no qual Rui Barbosa negou pedido de indenização a um grupo de escravocratas que queriam do governo a criação de um banco encarregado de indenizar ex-proprietários de escravos e seus herdeiros “dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888”. A resposta de Rui poderia ser considerada, hoje, uma verdadeira lacração: “Mais justo seria e melhor se consultaria o sentimento nacional se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o tesouro”.

Lacombe, que foi o histórico diretor da Casa Rui Barbosa, no entanto, não poupa o ex-ministro, e chama a queima dos arquivos de “desvario”, “espantoso ato de vandalismo” e “malefício”, em seu livro Rui Barbosa e a queima dos arquivos.

O ato, portanto, não pode, à luz de tudo o que se viu até aqui, ser lido como “abolicionista” e sim, no máximo, em defesa dos cofres públicos, já que sua intenção segundo essa linha de raciocínio seria não pagar indenizações. Mas em que isso beneficiaria os escravos? Pelo contrário: e se fossem os próprios escravos a requererem indenizações, como aconteceu nos EUA? De fato, já houve uma tentativa de indenização por parte de escravos no Brasil. Ela foi barrada.

Além disso, os senhores de escravos que faziam o forte movimento indenizatório naqueles anos tinham seus próprios documentos guardados em casa e não precisavam do estado para pedir indenizações. Já os escravizados negros, que eram objetos comprados e vendidos, esses sim dependiam dos documentos que não existem mais.

Não se pode afirmar de modo categórico, portanto, que a atitude de Barbosa tenha sido a de conter as indenizações. O que se pode afirmar é que, na prática, parte fundamental da história das famílias negras no Brasil foi incendiada. Escravos, filhos, netos e bisnetos não foram somente privados de indenizações por conta das fogueiras, mas também de sua história familiar. Foram destruídos inclusive registros de filhos nascidos livres, como está escrito no próprio decreto assinado por Rui Barbosa. Ou seja: foi negado o direito à história de quem nunca havia sido escravo.

Hoje, não conseguimos descobrir de onde as pessoas vieram e nem seus sobrenomes. São dados que estavam nos documentos e quase que exclusivamente neles, já que eram alfandegários, de registros de imóveis e de pagamentos de impostos – informações sobre uma mercadoria, que era infelizmente o que os negros eram no Brasil daquele tempo.

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Um documento de penhor de escravos. Nesses registros havia informações que poderiam ajudar às famílias negras de hoje a saberem quem são e de onde vieram.

 

Registros históricos de vários jornais da época, no entanto, nos ajudam a lançar uma nova luz nessa acalorada discussão, abrindo espaço para uma interpretação diferente da mais aceita atualmente.

A 13º sessão ordinária do Congresso Nacional, ocorrida no dia 20 de dezembro de 1890, foi notícia na edição do dia seguinte do “Diário de Notícias” do Rio de Janeiro.

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A publicação descreve uma moção apresentada para aclamar a decisão de queimar os arquivos da escravidão dizendo: “O Congresso Nacional congratula-se com o governo provisório por ter mandado fazer eliminar os últimos vestígios da escravidão no Brasil”.

Em outro trecho, a moção diz: “Saúdo em nome dos abolicionistas paulistas a Rui Barbosa, por ter ordenado a destruição do arquivo negro da escravidão”.

A queima da documentação já havia começado na manhã de sexta-feira, segundo outra publicação do jornal, assistida por uma comissão nomeada pelo então ministro da Fazenda.

A edição do dia 22 de dezembro, uma segunda-feira, volta a aplaudir a ação e traz um elemento novo que é importante para entendermos a motivação do ato, o negacionismo, em um artigo intitulado “Bello Exemplo”, que descreve os arquivos como “inúteis e infames”.

Segundo o texto, a resolução estaria livrando as futuras gerações de “todas as vergonhas que poderiam ocorrer, humilhações e insultos que surgiriam sobre algum afro-descendente”. Seria realmente uma tentativa de apagar da memória do país a escravidão para que os descendentes dos negros não ficassem marcados como descendentes de escravos. Uma atitude de negar o passado, mesmo com as melhores intenções.

Em outro trecho do mesmo texto, um cidadão se contenta com o fato de que “seus irmãos” não seriam mais difamados. Note que nesses primeiros relatos jornalísticos sobre o fato, não surge, em nenhum momento, a teoria de que a queima se daria para evitar as indenizações de escravocratas.

Logo, os chefes abolicionistas de estados como Ceará, Pernambuco, São Paulo e Bahia receberam telegrama de João Fernandes Clapp, representante dos abolicionistas presente no episódio: “Salve o glorioso ministro da fazenda.”

 

Em 1871, a Lei do Ventre Livre surgiu como um projeto gradual de abolição. Na época ela determinava que escravos podiam utilizar seus pecúlios (o valor que o próprio negro tinha como propriedade) para a compra da alforria. Para isso foi instituído um Fundo de Emancipação cujas receitas seriam provenientes de “impostos, doações, loterias e multas impostas pela infração da própria lei”, como descreve Martha Abreu no Dicionário do Brasil Imperial.

Mas esse fundo não alterou em quase nada a realidade da escravidão brasileira. A Lei do Ventre Livre foi, na verdade, um tipo de apaziguamento para os ânimos dos abolicionistas e escravocratas. Mesmo recebendo o valor de cada escravo nascido livre, muitos fazendeiros mantiveram suas propriedades (os recém nascidos) até que eles pudessem alcançar a idade necessária para servir. Muitas crianças nascidas sobre a lei do ventre livre se tornaram escravas.

Enquanto isso, a visão de muitos no governo era a de que os escravos eram de extrema importância para a riqueza do país. Em 1887 é possível encontrar, na edição do dia 6 de abril do jornal O Paiz, um artigo que acusa instituições de crédito e o próprio Banco do Brasil de conspirar contra a causa abolicionista. Segundo o texto, os bancos impediram os fazendeiros que tinham empréstimos de libertarem seus escravos.

Mesmo entre os abolicionistas, havia uma leve divisão que considerava alguns nomes como extremistas e outros como moderados. Essa divisão se dava exatamente na visão de que os ex-escravos deveriam receber alguma compensação pela sua condição passada. Vários cálculos de quanto deveria ser essa reparação surgiram à época.

Nem todos os abolicionistas colocavam os desejos e a vida dos negros no primeiro plano da discussão. Várias personalidades estavam interessados em evitar uma catástrofe econômica – os negros tinham valor monetário, abrir mão desse valor poderia causar um colapso econômico, por isso esse grupo defendia a abolição gradual. Eram, portanto, abolicionistas moderados, que, além de evitar traumas para as bases financeiras do país, também nutriam um medo de um colapso social da sociedade branca como aconteceu na revolução do Haiti no final do século XVIII, quando os negros se revoltaram e tomaram o poder do país.

Um dos maiores abolicionistas brasileiros, Joaquim Nabuco, era considerado abolicionista moderado, tentava sempre equilibrar a questão humanitária com a questão financeira do país, conforme relato do Jornal do Comércio em 1885. Nabuco era muito preocupado com a integração dos negros na sociedade – enquanto deputado, chegou a colocar em votação um projeto de lei que previa a abolição da escravidão até 1890, com a fundação de colônias para os libertos.

Do lado radical ou extremista da abolição tínhamos nomes como José do Patrocínio e Luís Gama, que exigiam um final imediato de todos os cativos. Alguns de seus planos considerava um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuição das terras.

Esses nomes que defendiam a abolição de forma mais intensa e com maior integração dos negros à sociedade brasileira não conseguiram a reeleição para um segundo mandato e, com isso, seus planos para recompensar os negros fracassaram. Só os “abolicionistas moderados”, que mantinham certa convivência com os ideais escravocratas, compreensíveis à época, sobraram no governo.

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Nesse mesmo ano, uma nova versão do Hino da Proclamação da República deixava claro o sentimento dominante na época. Seus versos afirmavam: “nós nem cremos que escravos outrora, Tenha havido em tão nobre país…”. Como se a queima dos documentos apagasse a vergonha e a memória popular da escravidão.

Obviamente todo o peso desse projeto de apagamento histórico não foi causado, exclusivamente, por Rui Barbosa. Mas, apesar de ser amigo de muitos abolicionistas e ter defendido projetos para a evolução da causa no país, a determinação da queima dos registros da escravidão trabalhou para favorecer o negacionismo.

Até 1940, ainda era possível encontrar em jornais brasileiros o apagamento da escravidão como principal motivação das fogueiras. O Correio da Manhã daquele ano apresenta um texto que reforça essa visão. O jornal defende que a intenção era “que não se dissesse jamais ter havido, em algum tempo, no paiz, a mácula do captiveiro”, chamando a queima de “romântica ou ingênua”.

A versão em que aparecem os escravocratas exigindo indenizações como motivador principal do ministro Rui Barbosa para mandar queimar os documentos da escravidão só aparece em citações a partir da década de 1970. Mais precisamente no Anuário do Museu Imperial em 1976.

Entre outras hipóteses levantadas nesse anuário, argumenta-se a necessidade de uma pesquisa para saber se a queima foi executada mesmo em todas repartições públicas.

É impossível saber o que se passava na mente de Rui Barbosa, tampouco dizer que ele foi o responsável pelo tratamento que a escravidão teve no imaginário popular brasileiro depois das fogueiras. Mas me parece bem possível defender a tese de que suas ações fizeram parte de um plano da República, e que respondeu a um anseio de uma das sociedades mais escravocratas do mundo depois da Roma Antiga, para causar uma amnésia coletiva sobre a escravidão no país, e negar nossa história e nosso passado.

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